O cientista social trabalha com evidências e suposições. Não pode romper o tênue equilíbrio entre esses dois elementos. Se não se arrisca a lançar hipóteses a partir de suposições, corre o risco de repetir o já conhecido, reafirmar o óbvio, transformar a aventura humana numa narrativa sistemática e organizada como cadeias de elementos químicos ou rígidas fórmulas matemáticas. Se, por outro lado, abandona as evidências e se permite "delirar" à vontade, pode criar uma interessante obra de ficção desvinculada do conhecimento acumulado por gerações, comprometida apenas com a imaginação criadora do autor.

Caverna de Shanidai, Iraque, onde foram descobertos importantes achados do homem de Neandertal.

 

 

Correndo, conscientemente, esse último risco * mas respaldado pela sisudez do texto até a presente página*, gostaríamos de voltar a discutir a motivação que teria levado o Homo erectus a sair de seu hábitat. Já vimos que eles tinham condições para sair. Mas o que os levou mesmo a sair, é outra história, já que poder fazer algo não é sinônimo de fazê-lo.

De fato, a grande aventura humana de ocupação do planeta se iniciou há 1 milhão de anos, quando algum membro do grupo dos Homo erectus, firmando-se sobre seus pés, esticou a cabeça por sobre a rala vegetação da savana africana e se perguntou sobre o que haveria para além das montanhas que ele percebia acima da linha do horizonte. Naquele instante, talvez não fosse relevante e problema alimentar ou a necessidade de mais espaço. Nada nos leva a crer que aquele nosso ancestral tenha abandonado seu hábitat para resolver alguma questão material. Tanto isso é verdade que a esmagadora maioria de membros do grupo permaneceu no continente africano. À até provável que sua saída tenha sido um risco não devidamente calculado, uma vez que estaria trocando o seguro pelo duvidoso, o poço de água conhecido ou o riacho ao lado do acampamento pelo perigo de uma área desértica; poderia estar ameaçado em sua segurança, já que saía de uma área onde os perigos eram conhecidos, rumo ao desconhecido; abandonava uma região em que a tecnologia da sobrevivência era dominada para se embrenhar em situações novas.

Então, porquê?

Por espírito de aventura.

Não negamos condições objetivas como fundamentais para a ação humana. Mas que não se negue a ação do homem na História, seu poder decisório, sua iniciativa.

Aliás, a própria humanização do homem se dá nesse processo. Sabemos que, quanto mais primitivo o ser vivo, mais indiferenciado ele é. Dois protozoários são mais semelhantes entre si do que dois peixes, que por sua vez são mais semelhantes entre si do que dois cães. Entre os homens, as diferenças são maiores; não se vêem dois indivíduos iguais. Nessa linha de raciocínio, que não vale apenas para a aparência física mas também para o comportamento psicossocial, a atitude de aventurar-se, de ousar, é num certo nível um passo importante no processo de humanização.

Pode-se pensar na necessidade de explicar historicamente todas as atitudes humanas. Diríamos que o melhor seria verificar as condições históricas para elas. E essas condições existiam, como vimos. Mas há atitudes pessoais que não podemos explicar historicamente, do tipo "por que este e não aquele?". Isso faz parte da liberdade de escolha do indivíduo. Ou seja, o indivíduo atua subjetivamente dentro do condicionamento histórico.

E não se deve esquecer que certas sensações e sentimentos não são históricos, embora possam encontrar formas históricas de manifestação.

Vamos tentar explicar isso melhor. Se colocarmos uma mulher em um filme sobre a Idade Média saindo para as compras como se estivesse em um shopping center moderno, estaremos cometendo um grave anacronismo, já que a cabeça da mulher medieval não estava voltada para essa atividade ou diversão ou passatempo em decorrência de sua inserção na sociedade industrial e nos estímulos que sofre para consumir.

Entretanto, se colocamos uma mulher medieval sofrendo ou amando, tendo medo ou sentindo coragem, estaremos atribuindo a ela sentimento ou comportamento compatível ao momento histórico em que viveu, pois são sentimentos e comportamentos atemporais, ahistóricos.

Por isso não acreditamos estar incorrendo em anacronismo ao pensar nesse nosso ascendente como um ser que é diferenciado (afinal não é um protozoário), que ousa, que se aventura.

Ao abandonar seu território, o Homo erectus não sentiria medo?

Cremos que sim. Mas o medo não é, necessariamente, paralisante. Freqüêntemente nós o buscamos, desde crianças, no carrossel e na roda-gigante dos parques, nos túneis povoados por bruxos e caveiras, nas montanhas-russas. E que dizer do louco amor à velocidade, da volúpia por situações perigosas, das escaladas de montanhas lisas e geladas, das excursões nas selvas?

Amamos contos de fada porque terminam bem, mas amamo-los principalmente porque neles corremos riscos, enquanto leitores engajados. O homem não pode viver num estado de equilíbrio permanente: tranqüilidade, serenidade e calma excessivos são sinônimos não só de aborrecimento, de tédio, mas até de ausência de vida. O risco, aparentemente uma atitude necrófila (como diria Erích Fromm), é, na verdade, uma maneira de nos sentirmos vivos. Precisamos de situações de risco, de momentos de desequilíbrio para podermos em seguida nos reequilibrar. Na paz e na tranqüilidade da nossa poltrona, no calor de nossa calma, logo nos pomos a lembrar saudosos dos momentos de risco, de nossa aventura.

Condicionantes sociais e talvez genéticos nos fazem diferentes uns dos outros, também nesse aspecto. Para uns, a vida não pode dar descanso, há que estar em estado de tensão permanente: vida e aventura são sinônimos. Outros precisam de longos, imensos intervalos entre uma aventura e outra, seu medo os leva a viver as aventuras alheias: para isso há os programas de prêmios, imensas maratonas domingueiras na televisão, em que alguns de nós ficam horas diante do aparelho eletrônico, sofrendo sem riscos a emoção do risco alheio.

O Homo erectus que saiu da África oriental não será, com certeza, um telespectador-padrão de Sílvio Santos. Viver, para ele, era ousar, ousadia própria.

Simone de Beauvoir, em seu maravilhoso livro Todos os homens são mortais, demonstra que a consciência da morte não deve ser uma limitação à vida, mas sua própria razão de ser.

Nossos ancestrais não leram Simone de Beauvoir, mas não estavam dispostos a perder a vida pensando nos seus riscos. Antes, saíram para a aventura humana, a própria razão de ser da vida.
Vida sabidamente perecível. Por isso mesmo vivida com intensidade.

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